quinta-feira, 28 de março de 2013

Pedro


Dois sentimentos precipuamente se devem formar em nós à medida que se nos
desenvolve aos olhos a dolorosa Paixão de Jesus.
A humildade primeiramente: se assim se trata a lenha verde, que se há de fazer da lenha seca? Esta comparação não nos deveria abandonar. Em seguida a confiança: os meus pecados já estão lavados; a parte mais pesada da expiação está feita, eu só tenho que me aplicar o preço deste Sangue, sei onde e como. Finalmente, cumpre ajuntar esse pensamento de consolação, amarga sem dúvida, porém real: como ocupei a atenção de Jesus durante os Seus padecimentos! Como devo ter estado presente à Sua agonia do Coração, às Suas torturas do Corpo! E então, por uma conseqüência natural, acrescentaremos: como deve Ele estar agora presente a todas as minhas dores!
De fato, não há doravante sofrimento algum da nossa vida que não possamos vir
embeber no oceano da Paixão. A onda das nossas dores encontrará aí uma onda
semelhante: o sangue tocará o Sangue.
Fasciculus myrrhae inter ubera mea
commorabitur
(Ct 1, 2). A lembrança da Paixão cá está no meu seio, como um
ramalhete espinhoso e agreste; é só inclinar-me para lhe respirar o eterno odor.
Inclinemo-nos amiúde, ocasião não nos há de faltar.
É de todos estes sentimentos, diversa e freqüentemente amalgamados, que nascerá o amor.
Enquanto Jesus se vai abandonado e desolado, convém que esse amor O acompanhe,
fiel e condolente. Porque Ele se vai; desta vez está tudo bem acabado, os dois grupos se distanciam mais e mais um do outro: os soldados com Jesus amarrado tornam a subir as encostas do Ophel, e os Apóstolos embrenharam-se pelo vale, do lado de Siloé e das atrás gargantas da Geena.
Que solidão cruel para o Salvador, no séquito compacto e grosseiro que O cerca, que
silencio no Coração em meio ao tumulto dos guardas... Já não tem um amigo. É a
solidão angustiosa do Coração. Experimentamo-la algumas vezes durante a vida,
freqüentes vezes na velhice. Outra há, porém, que nos assustará mais, é a de nos
encontrarmos sós diante de Deus, à nossa chegada ao desconhecido do além. Onde
refugiar-me? Por quem chamar? Por que amigo? Que socorro? Tudo se desvaneceu,
tudo se escoou, tudo passou; ó minha alma, faze de teu Juiz um amigo enquanto ainda é tempo; depois será tarde demais.
Entretanto, Pedro, que fugiu como os outros, enche-se de remorsos. Torna atrás, não
esqueceu os seus protestos solenes e os seus múltiplos juramentos: “Ainda quando todos Vos abandonassem, eu, eu não Vos abandonarei”. Premido por este aguilhão retrocede.
O cortejo já vai longe, segue-o ele a passos prudentes, dissimulando-se, ora avançando e ora recuando. Que ver como acabará tudo aquilo.
É um misto de curiosidade e de respeito humano que o faz voltar. Há amor sem dúvida, mas já não está em primeiro lugar. Ora, o amor que não domina, cedo é dominado. Em Pedro é uma chama que já se entibia; a voz de uma criada extingui-la-á de vez. Ai está amiúde de que se compõem as nossas fidelidades: a uma mecha que ainda fumega!
Deus bem que se quer contentar com ela, contanto que lha consintamos reacender; mas nós Lhe disputamos ainda essa centelha mortiça.
Esta lamentável história de Pedro é bem simples. A queda está no termo do declive
como fatal, inevitável. É a história de todas as ocasiões em que nos enleia a nossa
presunção.
Pedro chegou com outro discípulo até à porta. Este outro faz sinal à porteira, que ele
conhecia, para mandar entrar aquele; Pedro entra.
– É então um dos discípulos dEle? Pergunta curiosamente a mulher.
A pergunta era natural. Pedro responde pressurosamente, a fim de afastar desde logo qualquer suspeita:
– Não, não.
E passa.
Disse ele essa palavra sem lhe prestar grande atenção; aliás, a seus olhos não tem aquilo conseqüência: uma porteira!... Preocupado com o seu intento, mistura-se aos soldados; o outro discípulo, conhecido do Sumo Sacerdote, entrou mais a dentro na sala.
No átrio onde se agruparam os soldados, conversa-se em derredor da fogueira. Conta-se o que se passa e as peripécias da prisão de Jesus. Uns vão, outros vem. Pedro aquece-se indiferente, escutando, sem dizer palavra. Os soldados todos se conhecem entre si:
reparam, pois, no estranho.
– Será um dos discípulos dEle? Dizem; e depois, diretamente a Pedro:
– És discípulo dEle?
– Ó homem, não sou.
A conversa se reata de contínuo a esta segunda mentira. Pedro viu nesta apenas um
expediente para alcançar o seu fim: não percebe que desce. Uma hora decorre.
No entanto, acabam de esbofetear Jesus; Pedro ouve tudo, está ao corrente, às zombarias recrudescem após esse ultraje, ri-se aquela gente ruidosamente da bofetada dada e recebida. A porteira atarefada vem, sempre curiosa, rondar em torno ao fogo, atraída sem dúvida por aquela algazarra. Reconhece Pedro.
– Eh! Diz ela; aqui está um que era discípulo dEle. E poderia acrescentar: Pediram-me
que o deixasse entrar.
– Tu estavas mesmo com Jesus de Nazaré? Pergunta diretamente a Pedro.
– Não, mulher, em verdade não sabes o que estás dizendo; eu, discípulo dEle?! Não vejo o que queiras dizer.
Era já demais, em verdade, Pedro, que mente com sempre maior descaro, sente que não poderá sustentar por muito tempo aquele papel. Retira-se, era prudente, e dirige-se para a porta, como para sair. O galo começava a cantar: poderiam ser duas horas da manhã.
A mulher percebeu o movimento do apóstolo: ela adivinha, penetra-lhe a fraqueza.
– Pois não; diz aos soldados, ele bem que era discípulo.
Os soldados então interpelam Pedro:
– Oh! Sim! És dos dEle; não és galileu? Basta te ouvir falar para te reconhecer o
sotaque. E além disto, acrescenta vitoriosamente um outro, eu te vi no horto, eu.
Ante esta dupla prova esmagadora, Pedro não pode prosseguir no seu sistema de
negação. Tornar atrás, confessar que mentiu, não o pode tão pouco. Irrita-se então,
começa a vomitar algumas imprecações que são mera explosão da sua cólera; depois,
das imprecações passa às blasfêmias, e acaba por estas palavras:
– Eu nem sequer conheço esse homem de quem me falais! – Oh! Pedro!
Pela segunda vez o galo cantou.
Nesse momento Jesus saía da sala para ir rematar dolorosamente a Sua noite no meio da criadagem e dos soldados. Passava a um canto do pátio; virou-se para Pedro e olhou-o.
A alma do apóstolo transtornou-se: ele sai, chora, não cessará mais de chorar.
Assim, uma palavra de Jesus não pôde penetrar o coração de Judas, – Amigo, que
vindes fazer? – mas um olhar faz fundir-se o coração de Pedro. É o único consolo, aliás bem amargo, do Mestre, em meio àquela noite acerba, e quão caro é comprado!
Paremos um instante. Contemplemos Pedro a fugir na noite, sem saber aonde vai, com a alma liquefeita, coando-lhe pelos olhos; os soluços a estrangularem-lhe a garganta, e ele a repetir maquinalmente, – pois é o grito fatal de todo remorso que revolve incessantemente o dardo que feriu de morte – Eu nem sequer conheço esse homem de quem falais!... E contemplemos também Jesus na sala baixa, coberto com o molambo que Lhe lançaram no Rosto, de olhos cerrados, cheios de lágrimas, a repetir também, –
pois é o grito supremo da dor curvada sobre as próprias feridas – Eu nem sequer
conheço esse homem de quem me falais. Aí está com que os ocupar um e outro: Pedro todo o resto da vida, Jesus até à morte.
Porque foi que Pedro caiu? Foi simplesmente porque se expôs à ocasião? Não, ele se
devia a si mesmo, devia a Jesus Cristo o ir expor-se. Há perigos que devemos afrontar sob pena de covardia.
Será que ele não amava a Jesus Cristo?


A SUBIDA
DO
CALVÁRIO
Pelo
Padre Luís Perroy. S. J.
Editora Vozes
1957
IMPRIMATUR
Por comissão especial do Exmo. e Revmo. Sr. Dom Manuel Pedro da Cunha Cintra,
Bispo de Petrópolis, Frei Desidério Kalver-Kamp, O.F.M Petrópolis, 19-11-1957.

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