terça-feira, 23 de julho de 2013

A espiritualidade de Santa Catarina de Siena


Introdução
Falar acerca da espiritualidade de Santa Catarina de Siena é, em meu entender, procurar de algum modo uma aproximação à sua mundividência, marcada inelutavelmente por alguns referenciais que estruturam a sua obra, porque estruturaram a sua existência, onde o amor ao próximo marcado pela mendicância e o amor a Deus se afirmam como traves mestras do seu modo de pensar.
Espiritualidade porque se trata de pôr em evidência os traços do seu pensamento que possibilitam a elevação da alma, a sua espiritualização, com vista a uma progressiva perfeição. Tal itinerário, concretizado mediante o caminhar de virtude em virtude, abrindo-se ao desejo infinito de Deus, em que Cristo emerge como Modelo histórico e transhistórico, porque é sinal do cruzar do humano e do divino. Com efeito, como nos diz Santa Catarina de Siena, o homem foi criado como imago Dei e recriado como imago Christi.
Ora, para dar o assentimento a esta realidade, as virtudes, enquanto padrões de excelência espiritual, permitem que o homem na sua itinerância se desvincule do apegamento a tudo o que é da ordem do terreno, material e transitório, que as noções de corpo, amor sensitivo e amor próprio de si propiciam, para mediante a virtude se elevar num itinerário de aperfeiçoamento espiritual, que implica etapas, até à experiência inefável e indizível de união com Deus.
Se o amor tão só terrestre é fatal para o homem, concebido essencialmente como alma, o pico do aperfeiçoamento espiritual corresponde à experiência unitiva da alma com Deus, a qual é inefável, indizível, mas plena de sentido e que confere espessura e plenitude à existência humana. Com efeito, para a Santa, a mística assinala a experiência fulcral do homem.
Assim, e sabendo que esta nossa reflexão é imperfeita e não esgota a riqueza da sua espiritualidade, farei referência a cinco aspectos que permitem, num diálogo com o seu pensamento, apresentar o meu testemunho, que se constitui como aproximação ao seu itinerário tão próprio e sugestivo que, no entanto, não está isento de perplexidades.
Há que dizê-lo, o seu modo de pensar é complexo, com alguns aspectos paradoxais, rico de pistas de reflexão, mas em que tudo converge para um único objectivo: o afirmar, mediante actos que comprometem a sua existência, o amor a Deus, mediante o amor ao próximo.1
1 Quando nos referimos a perplexidades ou mesmo a paradoxos, temos em mente, por exemplo, a sua concepção negativa de corpo como lugar de mal, mas o próximo, o meu semelhante é deveras amado, mesmo na sua realidade corporal. Como se poderia compreender e considerar o seu trabalho de cuidar de doentes repugnantes? Um outro paradoxo é o facto da sua valorização da incarnação de Cristo não trazer em si mesma uma valorização de uma fenomenologia do corpo. Santo António de Lisboa, por exemplo, um século antes, devido ao cristocentrismo franciscano, faz precisamente essa valorização e esboça uma fenomenologia do corpo, que corresponde já às novas coordenadas da sua época as quais se preocupam nesta altura com as problemáticas de cariz naturalístico.
No primeiro momento, centrar-nos-emos na perspectiva do desapego relativamente ao corpo e ao apego no que diz respeito aos valores que informam a alma. A máxima é: foge do pecado carnal e espiritual e adere às virtudes, por amor ao próximo e a Deus.
No segundo momento, tematizaremos a sua concepção antropológico-teológica, centrando-nos na sua concepção de homem como imago Dei e imago Christi, pondo em evidência a alegoria da ponte aplicada a Jesus Cristo.
No terceiro momento, porque o itinerário de elevação espiritual implica uma compreensão do que é a alma, faremos menção às suas três faculdades: memória, intelecto e vontade, mostrando que todas elas convergem para a dialéctica do amor.
No quarto momento, mencionaremos a primazia ontológica e metafísica do amor: ao próximo, relativo mas essencial, a Deus absoluto e fundacional.
No quinto momento trataremos da mística de Santa Catarina, tomando-a como experiência limite, experiência de beatitude e inebriamento, antevisão da vida celeste.
Do Corpo para a Alma
Muitas são as menções que Santa Catarina faz acerca do corpo, sendo este concebido, relativamente à alma, como “vasello”, portanto recipiente e também como “veste fétida”, ou seja, como invólucro 2, dando origem ao pecado.
O corpo é, sem dúvida, fonte do temível amor-próprio e do amor sensitivo, de tal modo que abandonado a si mesmo é lugar de mal 3. E porque não se basta a si mesmo, o corpo necessita da fortaleza da alma 4.
No Diálogo diz-nos: o amor sensitivo, que corrompe, tal como a árvore inquinada, é lugar de mal e afasta o homem de Deus 5. Além disso, na sua classificação das lágrimas, que também elas dizem da perfeição e imperfeição da criatura humana, refere que a raiz das lágrimas sensuais é o amor-próprio6.
Ora, este amor-próprio ou amor de si, que é “nuvilla” (núvem), corresponde a uma desordem do coração e é inequívoco sinal de morte 7 e por isso é treva 8. Aliás, todo o amor sem Deus é escuro e tenebroso 9.
Daqui resulta que o amor-próprio é concebido como vil, pois é sempre da ordem do pecado 10. E os pecados, como ramos de árvore inquinada curvados para terra, curvam
2 Oração XXII. Para as orações usámos a seguinte edição: Orazioni, Roma, Ed. Cateriniane, 1978, 2ªed. a cura di G. Cavallini.
3 Diálogo da Divina Providência (sigla D). Neste caso: D, c. LXXVI. Para esta obra usámos a seguinte edição: Dialogo della divina Provvidenza, ou Libro della divina Dottrina, Roma, Ed. Cateriniane, 1969, Siena, Cantagalli, 1995, 2ªed. (ed. critica curata da G. Cavallini)
4 Cf. D, c. LXXIX
5 Cf. D, c. XCIII
6 Cf. D, c. LXXXIX
7 Cf. D, c. XCIII
8 Cf. Carta 77. Para as cartas que têm numeração árabe usámos a seguinte edição: Lettere, Bemporad, 1859-60.
9 Cf. Carta 113.
10 Cf. Carta 29 ou XVIII. Para as cartas com numeração romana usámos a seguinte edição: Lettere, Roma, Istituto Storico Italiano dal Medioevo, 1940 (ed. critica curata da Dupré-Theseider).
também o homem, fecham-no no círculo dos seus interesses materiais e transitórios e deste modo afastam-no do que é essencial.
A criatura humana, ser superior da criação, mediante a falta, pelo pecado, está privada de Deus 11. São Bernardo de Claraval diria: relegou-se para a reggio dissimilitudinis. Encontramo-nos perante a imperfeição humana, pois no itinerário de aperfeiçoamento, a alma, ainda que ligada ao corpo, quer separar-se dele, pois é ele que impede o homem de ver Deus cara a cara 12.
É esta a miséria do homem, mas estamos perante a condição humana, a qual só pode ser superada pelo esforço, pela iniciativa quanto à prática da virtude, contando com o concurso da Graça. Só assim esta situação pode ser minorada, mas nunca anulada.
Em nosso entender, e como conclusão relativamente a este ponto, o que Santa Catarina pretende, sabendo que a condição humana exige a ligação da alma e do corpo, é fazer ressaltar a excelência da primeira, a sua primazia relativamente ao segundo. Enquanto o corpo assinala aquilo que no homem é transitório, a alma pelo contrário traz consigo a marca daquilo que no ser humano constitui a sua dignidade, ou seja, ser imago Dei.
O Homem: imago Dei e imago Christi
Santa Catarina, no seu esforço de clarificação do que é o homem como ser espiritual, considera que na medida em que foi criado à imagem e semelhança de Deus, portanto como imago Dei, pelo pecado afastou-se de Deus, não correspondendo aos desígnios para o qual foi criado.
Ora, este afastamento, a fim de ser remediado, implica a adesão ao dom que Deus fez ao homem, ou seja, significa que há que dar o assentimento a Cristo que veio ao mundo “no estábulo da nossa humanidade” 13, a fim de remediar os males causados pelo pecado.
Nesse sentido e para sua salvação, a alma deve recriar-se como imago Christi. Por isso nos diz: “a criatura racional criada à imagem e semelhança de Deus e recriada no sangue do seu Filho unigénito” 14.
Vejamos, então, como concebe a Santa a alma, enquanto imago Dei. Fundamentalmente, como alma virtuosa, emergindo a caridade como matriz de todas as outras virtudes, as quais, por isso mesmo, a secundam. Daí a seguinte menção: “E de entre a beleza que Eu dei à alma criada à minha imagem e semelhança, olha para aquelas que estão vestidas com a veste nupcial da caridade, adornadas de muitas virtudes verdadeiras” 15.
Que virtudes, porém, são essas? Em primeiro lugar, a caridade é secundada pela humildade, a qual é “balia” e “nutrice” da primeira, ou seja, ama da própria caridade 16;
11 Cf. D, c. XCIV
12 Cf. D, c .LXXIX
13 Oração XXII
14 Carta 113
15 D, c. III
16 Cf. D, c. III e c. LXXVIII
em segundo lugar, e fazendo referência à própria caridade como árvore, recorda que esta funda as virtudes da paciência, fortaleza e perseverança, sendo coroada pela luz da fé 17. Neste contexto, a paciência é “mirollo”, ou seja, medula da caridade, sendo por isso mesmo aquela que promove o acordo entre as virtudes 18.
Ora, o conferir assentimento às virtudes, em que todas elas adquirem vida mediante a caridade é promover o movimento de elevação da própria alma, de tal modo que ela “engorda” 19, cresce 20.
Mas o homem, pelo livre arbítrio, pode permanecer preso do pecado, que é exemplificado pelo apegamento às delícias, à desonestidade, soberba, avareza, amor próprio de si, ódio e desprazer relativamente ao próximo 21. O pecado, como já vimos, afasta da imago Dei, de tal modo que a alma como que se afoga no “mar tempestuoso desta vida tenebrosa”22. Pelo pecado a alma como que morre.
Porque o homem pelo pecado se afastou de Deus, não correspondendo ao dom que lhe foi outorgado, Cristo incarnou, a fim de remediar os males do mundo e retirar a criatura racional da morte, restituindo-a à verdadeira vida 23.
E, por isso, Cristo ao incarnar fez-se ponte, que liga o céu e a terra 24, ponte entre a suprema altura de Deus e a baixeza do homem. Esta ponte está levantada para o alto, tem “scaloni” etapas, que permitem reconduzir o homem da imperfeição à perfeição 25. Esta é uma possibilidade que se oferece à conquista do ser humano que se quer realizar planamente.
Jesus Cristo, com efeito, é ponte que está colocada sobre o rio do pecado, possibilitando ao homem que pelo livre arbítrio, ou seja, mediante a sua própria colaboração, em que a noção de esforço é central, através de uma vontade guiada pela razão, passe a ponte que está construída com as pedras da virtude.
A possibilidade de salvação da criatura racional está nesta ponte, onde se dá a união da natureza divina com a natureza humana. Nesta ponte há três etapas que são figuradas pelo corpo de Cristo. À primeira corresponde os pés, à segunda as costas, à terceira a boca, mas a passagem de uma etapa a outra, ou a não passagem, significa a elevação espiritual ou a não elevação. Por isso nos diz: “na primeira despiram os pés do afecto do amor ao vício; na segunda saborearam o secreto e o afecto do coração onde conceberam o amor pela virtude; na terceira, na paz e quietude da mente, experimentaram em si a virtude e elevando-se do amor imperfeito atingiram a grande perfeição. Aqui encontram o repouso na doutrina da minha Verdade” 26.
A fim de se fazer este percurso há que dar o seu assentimento às virtudes: paciência, obediência, pobreza, castidade, humildade e amor. A virtude da paciência conduz da
17 Cf. D, c. LXXVII
18 Cf. D, c. XCV
19 D, c. LXXVI
20 D, c. CX
21 Cf. D, c. IV
22 D, c. XXII
23 Cf. D, c. XXII
24 Cf. D, c. XXI
25 Cf. c. LX
26 D, c. LXXVIII
imperfeição à perfeição, seguindo Cristo “il dolce agnello” 27. Ora, por tudo quanto foi mencionado, infere-se que o homem, mediante as virtudes que informam a alma, é perfeição sempre a fazer-se, enquanto Cristo é Aquele cuja perfeição não necessita de crescer 28. Assim sendo, a perfeição humana é a possível, relativa à nossa condição de peregrinos, daí a angústia de poder falhar o caminho.
Com efeito, pelo livre arbítrio, o homem tem a possibilidade de passar a ponte ou de o não fazer. Os que a passam são “árvores de amor”, os que a não passam são “árvores de morte”.
Passar a ponte significa seguir Cristo, espiritualizar-se e corresponder aos desígnios de Deus, porque a incarnação de Cristo chama a atenção para a dignidade humana, para a sua supremacia como ser da criação, superior à dignidade do anjo. E por isso menciona: “pela união que eu fiz da minha divindade com a natureza humana, de tal modo que nisto vós possuís maior excelência e dignidade que o anjo, porque Eu tomei a vossa natureza e não a do anjo” 29.
Jesus Cristo emerge, assim, como um modelo fundamental para o homem seguir e por isso foi recriado no seu sangue – de notar que para Santa Catarina o sangue de Cristo é um motivo sempre recorrente, é o símbolo da salvação humana, o sangue de Cristo derramado por amor aos homens. Por isso a Santa refere: “Io voglio sangue” 30. Cristo, que é médico doce e amoroso 31, doce e bom 32, flor odorífera 33, deve ser amado pelo homem, a fim deste último corresponder ao seu grande amor.
Em forma de conclusão, relativamente a este ponto, podemos afirmar que o homem criado como imago Dei e recriado como imago Christi, vem salientar a dialéctica da imperfeição e da perfeição, em que mediante a virtude a alma tem a possibilidade de realizar este último desígnio, ainda que muitos sejam os obstáculos que na existência se lhe oferecem.
Contudo, uma questão emerge: como se processa esta aquisição da virtude com vista ao conhecimento de Deus? E a Santa responde, interrogando: “onde O conhecemos e a nós mesmos? Dentro da nossa alma” 34.
Então, há que perguntar como concebe Santa Catarina o conhecimento que a alma tem de Deus?
27 D, c. LXXVII
28 Cf. D. c. LXXXIX
29 D, c. CX
30 Carta CII.
31 D, c. CXXXIV
32 Carta 29 ou XVIII.
33 Oração XI
34 Carta 78
Como se compreende a Alma?
As coordenadas da espiritualidade de Catarina de Siena implicam o reconhecimento do itinerário de descentramento de si para o próximo e para Deus, num movimento que ascende da imanência recusada à transcendência afirmada absolutamente.
É na casa do conhecimento de si mesmo, ou seja, é na intimidade da consciência que a alma conhece a Verdade 35 e isto mediante “la dota che io vi diei” 36. Este dote ou dom, outorgado por Deus ao homem desdobra-se em: memória com a sua capacidade de reter os benefícios; intelecto que vê e conhece a Verdade; afecto com que a alma ama Deus.
Encontramo-nos, com efeito, perante as três faculdades ou potências da alma, tradicionais na Idade Média, memória, intelecto e vontade, responsáveis por todas as operações da alma. A este propósito vale a pena escutar a Santa: “a memória encheu-se da recordação dos benefícios e da sua grande bondade; o intelecto pôs na sua frente a doutrina de Cristo crucificado, dada a nós por amor; e a vontade corre com grande afecto para o amar. Então, todas as operações estão ordenadas e coordenadas no seu nome” 37.
Podemos dizer, numa linguagem pascaliana, que o conhecimento que o homem possui relativamente à verdade, apoia-se quer nas razões da razão quer nas do coração. Pelo intelecto a alma possui a visão intelectual e por isso nos diz: “abre o olho do intelecto e verás os imperfeitos e os perfeitos” 38. Está aqui acentuado o valor da razão como visão, como capacidade de perscrutar. Através da disposição do coração o amor age, mas com livre arbítrio e razão 39 e deste modo “ingrassa”, ou seja, frutifica de um modo exuberante o jardim do conhecimento de si, o qual é abertura ao conhecimento do outro e de Deus.
Mas, intelecto e coração implicam a fé e, nesse sentido, o conhecimento da verdade é conhecimento de Deus o qual, como refere, “gera ódio e desprazer relativamente ao pecado e à sensualidade” 40, e o sangue de Cristo “faz conhecer a verdade àquele que removeu a ‘nuvilla’ do amor próprio, mediante o conhecimento de si” 41.
Ora, quem assim conhece e ama “acende” a sua alma e faz a experiência do inefável. O olho do intelecto e a luz da fé dão-se numa reciprocidade42. O conhecimento é, simultaneamente, racional e afectivo e a atmosfera de ambos é a fé.
Mas e para concluir acerca deste ponto, uma pergunta emerge: o que conhece a alma? O que ama a alma? A resposta é inequívoca, o próximo e Deus.
35 Carta CII
36 D, c. IV
37 Carta 263
38 D, c. XXII
39 Carta 113
40 D, c. III
41 D, c. III
42 D, c. CXXXIV
O Amor ao Próximo e a Deus
Uma das preocupações maiores da espiritualidade mendicante é o próximo , concebido como imago Dei e mediação necessária para Deus. De nada vale amar a Deus se esse amor não for provado no amor ao próximo. Para Santa Catarina de Siena, a alma não pode viver sem amor e este desdobra-se: a caridade para com Deus e para com o próximo, embora unidas são como as duas faces de uma moeda.
Com efeito, a Santa viveu intensamente, na sua vida, o amor ao próximo, sobretudo aquele que estava no desalento, afirmando esse amor mediante actos que, ao mesmo tempo que eram de altruísmo e portanto sacrificavam o egoísmo e todos os seus interesses conexos, a elevavam espiritualmente. Como exemplo, temos a sua dedicação aos doentes afectados pela peste, que a fez correr o risco de contrair esta temível doença. Mas o que estes actos salientam, de um modo inequívoco, é o seu desmedido preocupar-se com o outro, sublime pelo sacrifício de si, com vista ao cuidar, proteger e “spendere fatiche per il prossimo” 43.
Embora não possamos desligar o amor ao próximo do amor a Deus, há que compreender como é que estes se especificam, de que modo são perspectivados.
O amor ao próximo, em primeiro lugar, é concebido como recusa do egoísmo, do fechar-se em si mesmo, ou seja, esta caridade afirma a estrutura relacional, dialógica, como fundamental para a alma. E é por isso que esta, na medida em que está atenta ao outro, se dói com a ofensa que lhe é feita 44 e ajuda às suas necessidades 45, procura a sua saúde tanto física como espiritual 46, de tal modo que há lágrimas de choro pelo próximo 47, bem como de compaixão 48.
Ora, este cuidar e preocupar-se com o outro corresponde a uma vertente da vida de Santa Catarina e a sua obra reflecte, precisamente, esta sua atenção da alma, em que o amor pelo próximo atrai o amor a Cristo e a Deus. Mas como qualificar este amor? Na sua essência como amor puro, desinteressado, marcado pelo dar-se, generosidade para com o alter ego, resposta ao amor gratuito de Cristo e de Deus.
Neste momento uma outra interrogação emerge: como concebe Santa Catarina a caridade, na sua perfeição e verdade? Caridade perfeita e verdadeira é aquela que é gratuita, pois não é instrumental, nem servil, nem mercenária, nem utilitária 49. Estamos perante o amor de amigo. Como nos diz: “esta é a condição do caríssimo amigo: que são dois corpos numa alma por efeito de amor, porque o amor se transforma na coisa amada” 50.
Então, o amor ao próximo e a Deus é um amor desinteressado e gratuito, em que o primeiro é relativo e o segundo absoluto. Deus que é “libro di vita” 51 deve ser honrado e servido não por temor, mas por amor, esta a maior perfeição 52.
43 Preguiera alla SS. Trinità per chiedere perdono dei propri peccati
44 D, c. LXXVIII
45 Carta 78
46 Carta 208
47 D, c. LXXXVIII
48 D, c. LXXXIX
49 D, c. LX
50 D, c. LX
51 D, c. LXXVII
O amor emerge, assim, como a matriz dialógica do homem, aquela que liga o eu aos outros eus e a Deus, mas com a consciência plena de que este amor está centrado no amor a Deus: “não o próximo por si mas por Ti”, de forma a que o homem arda “nella fornace della sua carità” 53.
Para concluir acerca deste ponto, podemos afirmar que amar o alter ego e Deus são desígnios superiores da alma, que quer atingir a perfeição, mas na condição de amar desinteressadamente, sem nada esperar receber.
A Experiência Mística
Todos nós conhecemos bem o pendor místico de Santa Catarina de Siena, o seu ditar do Diálogo em êxtase, os seus momentos de união com Deus, mediante o vínculo do amor. A sua obra dá conta, precisamente, desta faceta. Contudo, como nos descreve a Santa esta experiência fulcral da sua vida?
Na dialéctica da imperfeição e perfeição humanas, de algum modo há que distinguir, no cume desta, os perfeitos, que atingem este estádio mediante a virtude, e os perfeitíssimos, que fazendo o percurso anterior lhe acrescentam a experiência do estado unitivo, estando fechados a tudo o que é terreno. Como nos diz: nos "perfetissimi servi miei /.../ l’orto dell’anima loro è chiuso” 54.
Ora, isto significa que mediante a mística, a qual assinala o grau mais elevado da experiência humana, segundo a Santa, se dá o anular dos sentidos corporais, bem como o superar da razão, mediante o sentimento de matriz espiritual que se traduz em amor como afecto da alma. Daí a seguinte menção” congregada e unidas estas potências e imersas e ‘affocate’ (inflamadas) em mim, o corpo perde o sentimento: porque o olho vendo não vê, o ouvido ouvindo não ouve, a língua falando não fala – apenas uma ou outra vez, devido a uma abundância do coração, permitirei que a língua fale para desabafo do coração e para glória e louvor do meu nome, de tal modo que falando não fala – a mão tocando não toca, os pés andando não andam: todos os membros estão ligados e ocupados pelo sentimento do amor” 55.
De facto, a mística assinala um momento único na experiência humana, inefável e indizível, em que a alma se “afoga” e perde na “fornalha” da caridade divina56. Experiência marcada pela evanescência, pois mal se atinge logo escapa.
Mas, porque o homem é corpo e alma, este tipo de união com Deus nunca pode ser permanente. Como nos diz: “ a alma que está ligada ao corpo não é capaz de receber continuamente a união que Eu faço na alma”. Como refere mais adiante, o corpo é impeditivo de ver Deus cara a cara 57. Contudo, este obstáculo não demove a alma de, mediante o esforço e o concurso da Graça, desejar ver Deus cara a cara, até porque, conforme menciona, a união da alma com Deus é mais perfeita do que da alma com o
52 D, c. LX
53 Oração XX
54 D, c. LXXVIII
55 D, c. LXXIX
56 D, c. LXXVIII
57 D, c. LXXIX
corpo: “a união que a alma faz em mim é mais perfeita que a união entre a alma e o corpo” 58. Encontramo-nos perante o supremo desejo do homem, bem como frente à sua mais sublime experiência de descentramento de si para Deus.
Experiência, sem dúvida, fugaz e evanescente, que mostra bem o alternar da vida activa e da vida contemplativa, dando-se a primeira em distensão temporal e a segunda em concentração. Alternância inevitável, pois o homem não pode permanecer na contemplação, no êxtase, na embriaguez espiritual. A experiência mística, mal se toca logo escapa.
Esta é, porém, uma experiência fundamental em que o homem e Deus se unem como o peixe e o mar 59. Este movimento, de suprema elevação espiritual, contudo, não está ao alcance de todos, pois implica um dom, bem como uma iniciação e o esforço de perseverar nesse caminho. Ele é descrito por Catarina de Siena como antevisão do gozo celeste 60, em que a alma faz a experiência do deleite e da tranquilidade pois abandona-se em Deus como “mare pacifico” 61.
De que modo expressa a Santa esta experiência limite do homem? Catarina não se cansa de repetir que estamos perante o indizível, daí a seguinte referência: a minha alma não parecia estar no corpo e recebia tanto deleite e plenitude que a língua não é suficiente para o dizer” 62.
Então, como expressar esta experiência? Indirectamente, mediante o recurso a metáforas, a comparações. O repouso da alma em Deus é simbolizado, por exemplo, pela “criança amamentada pela mãe” 63, por Deus como “mar pacífico” onde a alma feliz “saboreia” o amor divino 64. Com efeito, a alma alcança a felicidade ao saborear o amor divino que é doce, suave e odorífero. Este é o ápice da experiência humana, plena de significação e sentido, horizonte sempre intencionado pela Santa.
Para concluir acerca deste ponto, parece-nos importante referir que no itinerário de perfeição interior, Santa Catarina de Siena considera o momento da união da alma com Deus o mais sublime e conferidor de sentido à existência humana. A mística é para a Santa uma dimensão essencial do humana. Mística do coração, em que toda a linguagem que a descreve é marcada pelo sentimento espiritual do amor, que encontra no afeto da alma a sua expressão mais significativa.

MARIA DE LOURDES SIRGADO GANHO
58 D, c. LXXIX
59 D, c. II
60 D, c. LXXVIII
61 D, c. LXXXIX
62 Carta 219 ou LXV
63 D, c. XCVI
64 Cf. D, c. LXXXIX

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