terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Quarta-feira de Cinzas e início da Quaresma


NESTE INÍCIO de Quaresma, procuremos, mais ainda do que a mortificação corporal, aceitar o convite que a Liturgia sabiamente nos faz, de combater o amor próprio com todas as nossas forças.
Procurai o mérito, procurai a causa, procurai a justiça; e vede se encontrais outra coisa que não seja a Graça de Deus.
(Santo Agostinho, Sermão 185; PL 38,997-999)

Ao receber, na Quarta-feira que antecede a Quaresma, as cinzas sobre a cabeça, ouviremos mais uma vez um claro convite à conversão que pode expressar-se numa fórmula dupla: "Convertei-vos e crede no Evangelho"; ou: "Recorda-te que és pó e em pó te hás de tornar".

Precisamente devido à riqueza dos símbolos e dos textos bíblicos, a Quarta-Feira de Cinzas é considerada a porta de entrada da Quaresma. De fato, a Liturgia e os gestos que a distinguem formam um conjunto que antecipa resumidamente as características próprias de todo o período quaresmal. Na sua tradição, a Igreja não se limita a oferecer-nos a temática litúrgica e espiritual do itinerário quaresmal, mas indica-nos também os instrumentos ascéticos e práticos para o percorrer frutuosamente.

"Convertei-vos a Mim de todo o vosso coração, com jejuns, com lágrimas, com gemidos!" (Jl 2,12). Os sofrimentos e calamidades que afligiam naquele tempo a terra de Judá estimulam o autor sagrado a encorajar o povo eleito à conversão, isto é, a voltar com confiança filial ao Senhor dilacerando o seu coração e não as vestes. De fato, recorda o profeta, Ele "é clemente e compassivo, paciente e rico em misericórdia e se compadece da desgraça" (2,13). O convite que Joel dirige aos seus ouvintes também é válido para nós.

Não hesitemos em reencontrar a Amizade de Deus perdida com o pecado; encontrando o Senhor, experimentamos a alegria do seu Perdão. E assim, quase respondendo às palavras do Profeta, fazemos nossa a invocação do refrão do Salmo 50: "Perdoai-nos Senhor, porque pecamos!". Proclamando o grande Salmo penitencial, apelamos à Misericórdia Divina; pedimos ao Senhor que o poder do seu Amor nos volte a dar a alegria de sermos salvos.

Com este espírito, iniciamos o tempo favorável da Quaresma, como nos recordou São Paulo: "Aquele que não havia conhecido o pecado, Deus o fez pecado por nós, para que nos tornássemos, n'Ele, justiça de Deus" (2Cor 5, 21), para nos deixarmos reconciliar com Deus em Cristo Jesus. O Apóstolo apresenta-se como embaixador de Cristo e mostra como precisamente através d'Ele é oferecida ao pecador, isto é, a cada um de nós, a possibilidade de uma reconciliação autêntica.

Só Cristo pode transformar qualquer situação de pecado em novidade de Graça. Eis porque assume um forte impacto espiritual a exortação que Paulo dirige aos cristãos de Corinto: "Em nome de Cristo suplicamo-vos: reconciliai-vos com Deus"; e ainda: "Este é o tempo favorável, é este o dia da salvação" (5,20; 6,2).

Enquanto Joel falava do futuro Dia do Senhor como quem fala de um dia de terrível juízo, São Paulo fala de um tempo favorável, do Dia da Salvação. O futuro Dia do Senhor tornou-se o "Hoje". O dia terrível transformou-se na Cruz e na Ressurreição de Cristo, no Dia da Salvação. E este dia é agora, como diz o Canto ao Evangelho: "Hoje não endureçais os vossos corações, mas ouvi a Voz do Senhor". O apelo à conversão, à penitência, ressoa hoje com toda a sua força, para que o seu eco nos acompanhe em cada momento da vida.

A Liturgia da Quarta-Feira de Cinzas indica assim, na conversão do coração a Deus, a dimensão fundamental do tempo quaresmal. Esta é a chamada muito sugestiva que nos vem do tradicional rito da imposição das cinzas. Rito que assume um duplo significado: o primeiro é relativo à mudança interior, à conversão e à penitência; o segundo recorda a precariedade da condição humana, como é fácil compreender das fórmulas que acompanham o gesto.

Amados irmãos, temos quarenta dias para aprofundar essa extraordinária experiência ascética e espiritual. No Evangelho (cf. Mt 6,1-6.16-18), o Cristo indica quais são os instrumentos úteis para realizar a autêntica renovação interior e comunitária: as obras de caridade, a oração e a penitência. São três práticas fundamentais queridas também à tradição hebraica, porque contribuem para purificar o homem aos Olhos de Deus.

Estes gestos exteriores, que devem ser realizados para agradar a Deus e não para obter a aprovação dos homens, são por Ele aceitas se expressarem a determinação do coração em servi-lO com simplicidade e generosidade. Recorda-nos isto também um dos Prefácios quaresmais onde, em relação ao jejum, lemos esta singular expressão: "Ieiunio... mentem elevas", ou "com o jejum elevas o espírito" (Prefácio IV).

O jejum, ao qual a Igreja nos convida neste tempo forte, certamente não nasce de motivações de ordem física ou estética, mas brota da exigência que o homem tem de uma purificação interior que o desintoxique da poluição do pecado e do mal; que o eduque para aquelas renúncias saudáveis que libertam o crente da escravidão do próprio eu; que o torne mais atento e disponível à escuta de Deus e ao serviço dos irmãos. Por esta razão o jejum e as outras práticas quaresmais são consideradas pela tradição cristã como armas espirituais eficientes para combater o mal, as paixões negativas e os vícios.

Como no findar do inverno volta a estação do Verão e o navegante arrasta para o mar o barco, o soldado limpa as armas e treina o cavalo para a luta, o agricultor lima a foice, o viajante revigorado prepara-se para outra longa jornada e o atleta depõe as vestes e prepara-se para as competições; assim também nós, no início deste jejum, quase no regresso de uma Primavera espiritual, forjamos as armas como os soldados, limamos a foice como os agricultores, e como timoneiros reorganizamos a nave do nosso espírito para enfrentar as ondas das paixões. Como viajantes retomamos a jornada rumo ao Céu e como atletas preparamo-nos para a luta, com o despojamento de tudo.
(São João Crisóstomo- Homilias ao povo antioqueno, 3)

A Quaresma é também, assim como não poderia deixar de ser, um tempo de profundo ardor eucarístico. Buscando naquela Fonte inexaurível de Amor que é a Eucaristia, na qual Cristo renova o Sacrifício Redentor da Cruz, cada cristão pode perseverar no itinerário que hoje empreendemos solenemente. As obras de caridade, a oração, o jejum, - juntamente com qualquer outro esforço sincero de conversão, - encontram o seu significado e seu valor mais alto na Eucaristia, centro e ápice da vida da Igreja e da história da salvação. "Este Sacramento que recebemos, ó Pai", - assim rezamos no final da Santa Missa, - "ampare-nos no caminho quaresmal, santifique o nosso jejum e o torne eficaz para a cura do nosso espírito".

Pedimos a Maria Santíssima que nos acompanhe para que, no final da Quaresma, possamos contemplar o Senhor ressuscitado, interiormente renovados e reconciliados com Deus e com os irmãos. Amém!


Significado da Cerimônia de Cinzas

A Igreja nos indica, nas orações recitadas por seus ministros, o significado da cerimônia das Cinzas:

"Ó Deus, que não quereis a morte do pecador mas a sua conversão, escutai com bondade as nossas preces e dignai-vos abençoar estas cinzas que vamos colocar sobre as nossas cabeças. E assim reconhecendo que somos pó e que ao pó voltaremos, consigamos, pela observância da Quaresma, obter o perdão dos pecados e viver uma vida nova à semelhança do Cristo ressuscitado."

É, pois, a penitência que a Igreja nos quer ensinar pela cerimônia deste dia. Já no Antigo Testamento os homens se cobriam de cinzas para exprimir sua dor e humilhação, como se pode ler no livro de Jó e em tantas outras passagens da Escritura. Nos primeiros séculos da Igreja, os penitentes públicos apresentavam-se nesse dia ao bispo: pediam perdão revestidos de um saco, e, como sinal de sua contrição, cobriam a cabeça de cinzas. Mas como todos os homens são pecadores, relata Santo Agostinho, essa cerimônia estendeu-se a todos os fiéis, para lhes recordar o preceito da penitência. Não havia exceção alguma: pontífices, bispos, sacerdotes, reis, almas inocentes, todos se submetiam a essa humilde expressão de arrependimento.

Tenhamos os mesmos sentimentos: deploremos nossas faltas ao recebermos das mãos do ministro de Deus as cinzas abençoadas pelas orações da Igreja. Quando o sacerdote nos disser "lembra-te que és pó, e ao pó hás de tornar", ou "convertei-vos e crede no Evangelho", enquanto impõe as cinzas, humilhemos o nosso espírito pelo pensamento da morte que, reduzindo-nos ao pó, nos porá sob os pés de todos. Assim dispostos, longe de lisonjearmos o nosso corpo destinado à dissolução, tomemos a decisão de tratá-lo com dureza, refrear o nosso paladar, os nossos olhos, os nossos ouvidos, a nossa língua e todos os sentidos; a observar, o mais possível, o jejum e a abstinência que a Igreja nos prescreve. Rezemos juntos:

Ó Deus, inspirai-me verdadeiros sentimentos de humildade, pela consideração do meu nada, ignorância e corrupção. Dai-me o mais vivo arrependimento das minhas iniquidades que feriram vossas Perfeições infinitas, contristaram vosso Coração de Pai, crucificaram vosso Filho dileto e me causaram um mal maior do que a perda da vida do corpo, pois que o pecado mortal é a morte da alma e nos expõe a uma morte eterna. Pelo mesmo Cristo, Vosso Filho. Amém!

A Igreja sempre admoestou os fiéis a não nos se contentarem com os sinais externos de penitência, mas a lhe beberem o espírito e os sentimentos. Jejuemos, diz ela, como o Senhor deseja, mas acompanhemos o jejum com lágrimas de arrependimento, prosternando-nos diante de Deus e deplorando a nossa ingratidão na amargura dos nossos corações. Mas essa contrição, para ser proveitosa, deve ser acompanhada de confiança. Por isso a Igreja sempre nos lembra que nosso Deus é cheio de bondade e misericórdia, sempre pronto a perdoar-nos, o que é um forte motivo para esperarmos firmemente a remissão das nossas faltas, se delas nos arrependermos. Deus não despreza jamais um coração contrito e humilhado.

O pensamento da morte convida-nos ainda a viver mais santamente, e quão eficaz é essa recordação! A Liturgia termina exortando-nos a tomarmos generosas resoluções confiando plenamente em Deus. À borda do túmulo e à porta do Tribunal Supremo, quem ousaria enfrentar o seu Juiz, ofendendo-o e recusando o arrependimento ou vivendo na negligência, tibieza e relaxamento?

Coloquemo-nos, em espírito, em nosso leito de morte, e armemo-nos dos sentimentos de arrependimento e contrição que nesse caso teríamos. Depositemos nossa confiança na Misericórdia Divina, nos méritos de Jesus e na intercessão da Mãe da Igreja. Prometamos ainda ao Senhor:

** Cortar dos nossos pensamentos tudo o que desagrada a Deus;

*** Viver, durante esse período, no recolhimento interior que favorece em nosso espírito a oração e nos separa de tudo o que não é Deus.

___________
Adaptação da Homilia de Quarta-feira de Cinzas (21/2/2007) do Papa Bento XVI, na Basílica de Santa Sabina no Aventino

Ref.: artigo "Liturgia da Quarta-Feira de Cinzas Recorda-nos Nossa Condição de Mortais", disponível em:
 http://arautos.org/especial/13407/Quarta-feira-de-Cinzas.html
Acesso 5/4/014

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