terça-feira, 22 de janeiro de 2013

"A VIRGEM MÃE"



Penetremos, por uns momentos, num lar cristão. A família reunida está rezando.
Cadenciadamente, sucedem-se as Ave-Marias do terço, como as notas de um cântico. “Cheia de graça, o Senhor é convosco, bendita sois vós...” E também, como o refrão de uma canção: “Santa Maria, Mãe de Deus...”
Enquanto esses corações tornam a invocar Maria com a exclamação maravilhada de Isabel –“a Mãe do meu Senhor!” –, quase com certeza nem imaginam que, por trás dessa doce expressão – Mãe de Deus –, estão latejando os ecos apaixonados da mais antiga manifestação de devoção a Maria de toda a história do cristianismo.
Todo o amor tem horas de paz e horas de sobressalto. Nas horas tranqüilas, flui como um rio copioso e manso. Nos momentos em que esse amor é agredido de qualquer forma, o coração “salta”, quer para defendê-lo com ardor, quer para externá-lo com paixão.
Foi isto o que sucedeu com o amor por Maria no coração dos cristãos dos primeiros séculos.
Já nos alvores do cristianismo, a figura da Mãe de Jesus era uma amável presença no dia-a-dia dos fiéis. Belo testemunho dessa presença é a imagem mural da Virgem com o Menino, em clara
referência à profecia de Isaías sobre a Virgem-Mãe (Is 8, 8; Mt 1, 22-23), desenhada por um devoto “grafiteiro” nas catacumbas de Priscilla, em Roma.
Porém, muito cedo – já a partir dos fins do século I – houve quem tentasse desvirtuar com interpretações heréticas o ensinamento transparente do Evangelho sobre a maternidade de Maria. É verdade que os primeiros ataques foram desferidos diretamente contra o Filho, e só em
conseqüência agrediam a Mãe. Mas é um fato também que a reação dos primeiros cristãos mostrou que, para eles, o amor a Maria estava indissoluvelmente unido ao amor a Jesus Cristo.
Esses ataques começaram através dos “ebionitas”, uma seita semi-cristã de raízes judaicas, que se recusava a admitir que Cristo fosse Filho de Deus, gerado pelo Espírito Santo no seio de uma Virgem. Uma velha heresia, que os racionalismos e os ceticismos de todas as épocas não deixam de desempoeirar.
Para os ebionitas, Jesus teria nascido como qualquer outro homem: fruto da união de um
homem e de uma mulher; no caso, de Maria e de José. Portanto, para eles, Cristo não seria de modo algum a segunda pessoa da Santíssima Trindade, que se encarnou “por obra do Espírito Santo” (Mt 1, 18), isto é, não seria Deus verdadeiro, mas apenas um homem. Em conseqüência, Maria não seria
a Virgem Mãe de Deus.
Quase ao mesmo tempo, a literatura cristã dos séculos II e III via-se invadida por uma
multidão de escritos de seitas denominadas “gnósticas”. Procedentes de ambientes e influências sincretistas – judaísmo, filosofia neoplatônica, etc. –, esses grupos proclamavam praticamente o contrário dos anteriores: negavam a humanidade de Cristo. Nosso Senhor jamais teria sido homem verdadeiro, e por isso a afirmação de São João de que “o Verbo se fez carne” (Jo 1, 14) careceria de sentido real. Tais doutrinas ensinavam que Jesus era um ser exclusivamente espiritual de origem
divina – embora distinto de Deus –, o qual teria vindo à terra através de uma Mãe Virgem, Maria, mas com um corpo irreal, fictício, aparente, que eles denominavam “corpo psíquico”[NOTA DE REFERÊNCIA: cfr. José A. de Aldama, María en la patrística de los siglos I y II, BAC, Madrid,1960, págs. 33 ss.;].
É evidente que, ao negar-se a humanidade de Cristo, ficava automaticamente anulada a
verdadeira maternidade de Maria. Nossa Senhora não teria formado um Filho em suas entranhas – sangue do seu sangue –, mas teria sido apenas o canal de passagem de um ser espiritual. Como dizia um dos representantes dessas seitas gnósticas, Ptolomeu, Jesus ter-se-ia limitado a “passar por Maria como a água passa por um conduto”[NOTA DE REFERÊNCIA: cfr. Aldama, op. cit., pág. 47;].
A fé e o amor dos primeiros cristãos estavam atingidos em cheio. E reagiram com força. Em
face desses dois erros, os pastores e o povo fiel responderam reafirmando e vincando
vigorosamente duas verdades essenciais do mistério de Maria Santíssima: que Ela foi verdadeira Mãe de Cristo; e que não concebeu por obra de varão, mas por obra de Deus, mantendo intacta a sua virgindade.
Estamos perante as primeiras manifestações coletivas da fé e da piedade marianas.
Manifestações que já em fins do século I e no século II ficam plasmadas, esculpidas, com
admirável nitidez, nos textos das mais antigas “profissões de fé” – o Credo – das igrejas cristãs:
“Creio em Jesus Cristo, Filho de Deus, que nasceu pelo Espírito Santo da Virgem Maria”: natus est de Spiritu Sanctu ex Maria Virgine[NOTA DE REFERÊNCIA: cfr. Justo Collantes, La fe de la Iglesia Católica, BAC, Madrid, 1984, págs. 280-286;].
A fé da Igreja – de todos os fiéis – era assim fixada em formulações cristalinas.
Em primeiro lugar, Cristo é verdadeiro Homem, porque nasceu realmente de Maria, ex Maria Virgine. Maria é sua Mãe. Já o afirmara São Paulo, escrevendo aos Gálatas: Quando chegou a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de uma mulher (Gal 4, 4).
Em segundo lugar, Jesus Cristo é Filho de Deus: nasceu do Espírito Santo, e a sua Mãe não concebeu de varão, mas foi Virgem: de Maria Virgem. Já no começo do seu Evangelho, São Mateus declara sobriamente: Maria achou-se tendo concebido do Espírito Santo (Mt 1, 18).
Mais explicitamente ainda o ensina São Lucas, o evangelista que obteve de Maria as
confidências das coisas que Ela “guardava no seu coração” (cfr. Lc 2, 51). Quando o Anjo anuncia a Maria que “conceberá em seu seio e dará à luz um Filho”, a Virgem responde com um pedido de esclarecimentos: Como se fará isto, pois eu não conheço varão? Maria não duvida do que o Anjo lhe anuncia da parte de Deus. Mas precisa de uma explicação sobre “como se fará isso”. Estas palavras não teriam sentido algum, se a Virgem tivesse o projeto de realizar com José, com quem
“estava desposada”, a constituição de uma união matrimonial como qualquer outra. Se Maria as pronunciou, foi porque tinha oferecido a Deus a sua virgindade, e possuía a consciência de que Deus queria e aceitava esse oferecimento para sempre. Por isso, não lhe foi fácil compreender como era possível que o mesmo Deus que a queria Virgem, a quisesse também Mãe. A resposta do
Anjo dissipou todas as dúvidas: O Espírito Santo descerá sobre ti e a virtude do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra; por isso, o santo que há de nascer de ti será chamado Filho de Deus
(cfr. Lc 1, 31-38). Desde o século I, a fé cristã entendeu que era uma verdade divinamente revelada que Maria foi virgem antes do parto, no parto e depois do parto[NOTA DE REFERÊNCIA: cfr. Aldama, op. cit., págs. 81 ss.;].
Estas são as verdades do Evangelho. Esta é a fé que os nossos irmãos dos primeiros séculos
abraçavam com toda a sua alma, tal como o haveriam de fazer todos os que fielmente os seguiriam no decorrer da história.
Houve ainda um novo capítulo nessas “reações da fé e do coração”. Esse terceiro capítulo desenvolveu-se cerca de dois séculos mais tarde.
Desta vez tratou-se de um teólogo de Antioquia, Nestório, que fora elevado à sede patriarcal de Constantinopla. Um belo dia, começou a pregar alto e bom som contra a maternidade divina de Maria. Dizia Nestório que Maria não deveria ser chamada “Mãe de Deus”, mas apenas “Mãe de Cristo”. Por quê? Porque o teólogo em questão achava necessário “dividir” Cristo, distinguindo
nele duas “personalidades” diferentes, que – segundo afirmava – só estariam justapostas uma à outra: a humana e a divina. Por outras palavras, Cristo seria uma pessoa humana, à qual se teria unido – associado – uma pessoa divina. Conclusão: somente a pessoa humana seria filho de Maria.
Com isso, além de desvirtuar o mistério de Cristo, recusava-se a proclamar que Maria é,
verdadeiramente, “a Mãe do meu Senhor”, a Mãe de Deus.
A reação dos fiéis, hierarquia e povo cristão, não se fez esperar. Brotou com o ímpeto de um incêndio, reafirmando em uníssono a verdade revelada por Deus: Cristo é a segunda Pessoa da
Santíssima Trindade que, sem deixar de ser Deus, assumiu nas entranhas virginais de Maria a natureza humana. NEle há uma só Pessoa, a divina, e duas naturezas distintas – humana e divina – unidas num só ser pessoal. Maria é, portanto, verdadeira Mãe de Deus, porque é a Mãe de uma Pessoa que é Deus. Nenhuma mãe é apenas mãe do corpo do filho – embora só tenha gerado o corpo –, mas é mãe do filho inteiro, de alguém, de uma pessoa – mãe de João, de Antônio, de
Clara... –. Da mesma maneira, Maria é a Mãe de Jesus, que é uma Pessoa, uma pessoa divina. Por isso, é verdadeira Mãe de Deus.
Esta foi a verdade reafirmada e definida, em 22 de junho de 431, pelo Concílio de Éfeso em que a heresia de Nestório foi condenada. É comovente ler a carta de São Cirilo de Alexandria, que foi a alma desse Concílio, relatando o que aconteceu na cidade de Éfeso nesse dia de verão: ao anoitecer, uma autêntica multidão atirou-se às ruas, depois que os bispos reunidos acabaram de
proclamar a verdade da fé e de condenar o hereje. Inflamado de entusiasmo, o povo acompanhou os Padres conciliares até os seus domicílios, com tochas acesas e cânticos, aclamando em grandes vozes: Theotókos, Theotókos!, o que quer dizer: Mãe de Deus, Mãe de Deus![NOTA DE REFERÊNCIA: São Cirilo de Alexandria, Epistolae, XXIV; in Migne, Patrologia Graeca, 77, 138;].
O amor a Maria arrebatou os corações dos fiéis, esfuziantes de ternura. Os ecos daquela
noite memorável em Éfeso não se extinguiram nem se extinguirão jamais. Hoje, como ontem, como sempre, brotará das fibras mais íntimas da alma dos cristãos a alegria de dizer, saboreando-a, essa verdade de fé: “Santa Maria, Mãe de Deus...”



FRANCISCO FAUS
MARIA, A MÃE DE JESUS

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