quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Vereis o Filho do Homem...


Entretanto, duas coisas exasperam aqueles energúmenos: o olhar por vezes fixo, cheio de lágrimas, sempre tão doce de Jesus, e o silêncio dEste.
Esse olhar inquieta-os e perturba-os. Quereriam uma queixa, ao menos um grito de dor, para mostrar que bateram certo.
Então um deles, sem dúvida mais inventivo, propõe vendar os olhos perturbadores e fazer-Lhe uma troça do talento de profecia.
Recruta-se toda a gente, a atração vele a pena.
Portanto, entre duas cusparadas – pois está escrito: Não cessaram de me cuspir à Face –, entre duas bofetadas, dois lances de dados, dois púcaros de vinho, vão brincar de profeta:
“Vamos ver, Cristo, Messias, Filho de Deus, grande Profeta... quem te bate agora?” E uma bofetada estrepitosa abate-se-Lhe sobre o rosto. “Advinha! E aquele lá, quem é?” E por detrás outra bofetada envolve aquela Face, que queda imóvel como um rochedo (Is 50, 7). “Vamos, quem é? Como se chama? Que idade tem? De que lugar é? Fala homem!”

Se o véu cobria todo o rosto, soerguem-no às vezes para poder cuspir mais à vontade, depois abaixam-no novamente para não sujarem as mãos esbofeteando-O.
Como os olhos estão escondidos e a cabeça permanece imóvel, redobram-se à porfia pancadas, cusparadas e blasfêmias, até ao cansaço e ao enjoo.
Existem dois quadros dessa cena trágica naquela noite dolorosa.
Um, em que toda a Majestade Divina é representada no meio daquela atmosfera de pancadas e daquela tempestade de escarros e ultrajes. Outro, em que toda a malícia humana se ostenta na sua hedionda crueza.
O primeiro é um afresco do Beato Fra Angélico, no convento de São Marcos, em Florença.
O Cristo está sentado como um príncipe no seu trono, as dobras da veste pendem-Lhe igualmente de cada lado; a postura é tranqüila: toda a serenidade dos seres superiores. Com uma das mãos segura um cetro de cana, com a outra o globo do mundo: Ele é sempre o Rei do mundo; e em torno dEle há uma cabeça grosseira que saúda ironicamente, uma boca desaforada que cospe, mãos que se agitam para esbofetear, um punho cerrado que se adianta, outro que empunha uma vara para bater.
Calmo, imóvel, Jesus recebe um após outro todos esses ultrajes. Tem os olhos vendados: através do pano percebe-se-Lhe a pálpebra resignada e caída. A boca é triste: tal reflexo de majestade emana porém dAquele ser desprezado, que a gente cai de joelhos e O adora.
Fitemos um instante essa cabeça tão meiga, de olhos vendados. Há nesta venda a intenção dos homens e a de Deus. A intenção dos homens era um medo e um ludíbrio. Receavam, como dizíamos,
escarrando naquele rosto encontrar um dos olhares da Vítima, de tal sorte o olhar do Mestre permanece o olhar de Deus.
E um ludíbrio! Jesus já está amarrado, não tem mais a liberdade das mãos, porém tinha a dos olhares; é preciso suprimir-lha; não se tem mais que uma coisa que se atira de um lado para o outro, que se recambia, com que se brinca, Ele não vê!
A intenção de Deus é mais alta. Jesus cerra os olhos e parece fechar-se no sono e no silêncio de dentro, para mostrar sem dúvida que uma alma atada pelo amor da Santíssima Vontade de Deus deve relegar-se para o interior, viver nesse interior, sem fazer grande conta do que se passa fora.
Mas também para nos lembrar que, se Ele parece dormir, é só por um tempo; sabemos que Ele aguarda nesse silêncio profundo a hora do Seu despertar: “Eu terei o meu dia, terei a minha hora, para mim e para todos os meus eleitos, opressos em aparência por esse silêncio do alto”.
Dizia Ele havia alguns instantes: “Vereis o Filho do Homem, hoje esbofeteado pelos criados e cuspido pelos juízes, vê-lo-eis, vós que O espancais, vê-lo-eis resplandecente de majestade à direita de Deus, Deus Ele próprio! Dies irae, dies illa, calamitatis et miseriae (Sof 1, 15)”.
“Nesse dia em que Eu agir”, acrescenta pelo Seu profeta – logo atualmente parece não agir; “Nesse dia em que Eu concluir as minhas obras” – logo, não estão acabadas; “nesse dia em que Eu desfraldar a minha misericórdia e a minha justiça” – logo, elas estão em suspense ou apenas entremostradas; “nesse dia os bons serão a minha posse” –
estar nas mãos de Deus, onde melhor refúgio?...
E os perseguidores, os algozes, os ímpios... Onde aparecerão? Devorá-los-ei como o fogo a palha seca e leve.
Então vos volvereis, pecadores: vereis de longe a minha felicidade e a de todos os meus – que cruel e longínquo olhar! E tarde demais compreendereis que diferença há entre o justo e o ímpio, inter servientem Deo et non servientem (Mlq 3, 17).
Eu aguardo, meu Deus, e creio que hei de ver um dia o esplendor dos Vossos bens, na terra onde já não se morre.
Credo videre bona Domini in terra viventium (Sl 26, 18).
O segundo quadro, onde se ostenta toda a crueldade dos homens, realismo pungente, é uma cena de Poussin.
Numa sala baixa, alumiada por tochas ou candeias, os soldados bebem, riem, jogam ou cantam. O ódio e a impureza têm o mesmo rito: traço violento, bestial, que desfigura o homem, destruindo num instante o que a Face Divina nele deixara de Seu cunho.
A um canto, Jesus está sentado, de mãos atadas por trás das costas: postado de perfil, vê-se-Lhe o corpo que se inclina penosamente para a frente. A cabeça inteira está coberta de um pano, um molambo sujo, qual se pode encontrar no meio daquela
soldadesca. Alguns soldados e criados se divertem à custa da Vítima. Outros, cansados, puseram-se ao jogo.
Acabam sem dúvida de espancar o Mestre de uma maneira bem interessante, ou a palavra que Lhe lançaram deve ter sido mais pesada, porque os risos são mais grosseiros.
Por sob o véu de dobras pendentes e na atitude do Mestre, adivinha-se a dor, a resignação, o constrangimento íntimo e profundo do coração. As lágrimas devem rolar-Lhe dos olhos.
Ó cabeça vendada de Jesus! Ó zombarias, ó irreverências, ó covardes irrisões, vós consolais os justos oprimidos!
Por trás desse véu, Jesus conhece tudo, vê tudo e julga tudo.

Oculi Domini super justos (Sl 33, 31), os olhos do Senhor seguem os eleitos, e os ouvidos se lhes inclinam abertos ao menor suspiro.

Senhor, por trás do véu lembrai-vos de mim, para minha felicidade. Assim seja.
Memento mei, Deus meus, in bonum. Amen (Esdr 13, 31).


A SUBIDA DO CALVÁRIO
Pelo
Padre Luís Perroy. S. J.
Editora Vozes
1957
IMPRIMATUR
Por comissão especial do Exmo. e Revmo. Sr. Dom Manuel Pedro da Cunha Cintra,
Bispo de Petrópolis, Frei Desidério Kalver-Kamp, O.F.M Petrópolis, 19-11-1957.






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